Compra PcD: modelos podem perder itens de série sem aviso prévio? Especialista responde

Muito comum entre as montadoras, prática quase sempre pega os consumidores de surpresa
Comprar um carro e não saber qual catálogo vai receber: questão recorrente entre quem realiza a compra com isenção

Comprar um carro e não saber qual catálogo vai receber: questão recorrente entre quem realiza a compra com isenção | Imagem: Reprodução internet

A modalidade de compra com isenção de impostos destinada às pessoas com deficiência (PcD) ganhou enorme relevância nos últimos anos. O volume crescente de informações sobre esse tipo de aquisição, aliado às vantagens financeiras que ela proporciona, ajudam a explicar porque esse é um dos assuntos mais falados no momento.

Quem já realizou todo o processo de obtenção da CNH especial e passou a lidar com os pedidos de isenções tributárias, sabe que a compra PcD é um processo muitas vezes lento e burocrático, exigindo uma boa dose de tempo e paciência para lidar com todas as etapas.

Uma vez vencido esse primeiro passo, chega o momento de escolher o automóvel que melhor se adapta às suas necessidades. Grande parte do público PcD tende a optar por modelos até R$ 70 mil, limite para o abatimento de IPI, ICMS, IPVA, apenas para citar os principais tributos. Vale mencionar que cada estado do país conta com regras particulares para a compra com isenção, portanto é mais um ponto que exige cuidado.

As pessoas com deficiência também podem optar por carros acima de R$ 70 mil, porém, nesse caso, apenas o IPI poderá ser deduzido do valor final.

Não é difícil encontrar hatches ou sedans compactos que, mesmo com câmbio automático, oferecem configurações relativamente bem equipadas dentro do teto das isenções integrais permitidas. A questão muda de figura no caso de automóveis maiores e mais caros, como os SUVs, que geralmente precisam de versões especiais para atender os clientes PcD.

Uma polêmica, entretanto, diz respeito às mudanças no nível de equipamentos que essas versões exclusivas para a compra com isenção podem receber ao longo do tempo, prática que é bastante comum entre muitas fabricantes.

Um bom exemplo foi o que ocorreu com o Citroën C4 Cactus. O modelo foi lançado no segundo semestre de 2018 e, para chamar a atenção do público logo na estreia, a fabricante francesa ofereceu o SUV com um interessante catálogo chamado “Feel PCD” em seu portfólio. Ele se diferenciava das demais opções dos concorrentes diretos por um bom pacote de itens de série, o que motivou muitos consumidores a optarem pela novidade.

Cerca de quatro meses depois, ainda em 2018, o mesmo C4 Cactus destinado à compra com isenção passou a ser oferecido na versão “Live PCD”, perdendo muitos itens de série e pegando vários clientes de surpresa, incluindo quem escolheu o carro de olho na primeira versão.

Devido às reclamações do público, em abril de 2019 o C4 Cactus para PcD mudou pela terceira vez, agora inaugurando a versão “Feel Business”.

Não obstante, o impacto foi ainda maior quando, em agosto do ano passado, a Citroën resolve mudar pela quarta vez (!) o catálogo do SUV, inaugurando o pacote “Novo Feel Business”.

Toda essa novela gerou uma revolta em diversos consumidores do C4 Cactus, que, literalmente, não sabiam mais em alguns momentos qual configuração iriam receber. Como geralmente entre o início do processo da compra PcD e a aquisição efetiva do carro podem se passar vários meses, os clientes ficaram reféns das decisões da marca.

Mudando de fabricante, um caso recente envolve a nova geração do Chevrolet Tracker.

A montadora norte-americana escalou para atender ao público PcD a versão 1.0 Turbo automática inicialmente com um catálogo de equipamentos de série chamado R8T. Bem completo, ele praticamente contemplava os mesmos recursos da versão intermediária LT 1.0 Turbo.

A Chevrolet sempre deixou claro que o “Tracker PcD” no catálogo R8T enquadrava-se em um lote especial previsto apenas para a época do lançamento. Muitos interessados na novidade correram para garantir o SUV mais equipado, entretanto a pandemia do novo coronavírus e os seus efeitos sobre o comércio e a produção resultaram no fechamento de diversas concessionárias ao redor do país, bem como na interrupção da própria linha de montagem do SUV (inclusive com a suspensão de novos pedidos), o que comprometeu um acesso mais difundido ao Tracker R8T.

Além disso, sem qualquer aviso prévio aos consumidores, a Chevrolet apenas informou aos seus revendedores, no início de junho, que as unidades faturadas a partir do dia 15 deste mês tiveram uma mudança no pacote de itens de série, saindo de fábrica com um novo catálogo denominado R8U. A mudança não poupou sequer quem já havia assinado pedidos para o modelo entre o fim de março e o começo de abril deste ano, figurando no documento o pacote R8T. Esses clientes estão sendo orientados pelas concessionárias a assinarem novos pedidos para terem seus carros faturados, dessa vez mencionando o catálogo R8U.

As fabricantes alegam que os clientes PcD são informados quando assinam os pedidos por determinado modelo que as configurações podem ser alteradas a qualquer momento, o que, supostamente, as isentaria de quaisquer implicações legais. 

Essas mudanças nos catálogos podem ocorrer em especial para compensar aumentos nos custos de produção. Como o preço sugerido do carro não pode ultrapassar o teto de R$ 70 mil, a saída encontrada pelas montadoras é retirar itens de série. Em raríssimos casos, por questões de estratégia de mercado, algumas marcas podem acrescentar equipamentos nas versões PcD, tornando seus produtos mais interessantes à essa segmentação de mercado e promovendo um salto no volume de emplacamentos. 

Contudo, as fabricantes podem realizar tantas mudanças repentinas nas versões para o público PcD? Para jogar uma luz nessa questão, o Autoo entrevistou o advogado do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Igor Marchetti, que nos elucidou alguns pontos:

Autoo: As fabricantes alegam que, em seus contratos, deixam claro que na modalidade de compra PcD alterações desse tipo podem ocorrer. Contudo, do ponto de vista legal, isso é permitido? Tal cláusula que permite este tipo de alteração pode ser considerada abusiva? Em caso positivo, qual o fundamento legal?

Idec/Igor Marchetti: As montadoras têm o dever de informar a respeito de alterações em seus modelos, especialmente se tratando de veículos para PcD. Isso está garantido pelo artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, as alterações devem ser comunicadas previamente, antes de novos pedidos dos consumidores.

O consumidor não é obrigado a aceitar produtos que não estejam de acordo com o detalhamento apresentado no momento da compra. A entrega de produto com outras características configura descumprimento de oferta, cabendo, inclusive, a entrega forçada do produto dentro das conformidades da compra.

Única ressalva seria em relação a itens que afetem a segurança do consumidor, sendo cabível, nesses casos, o recall por parte das empresas para sanar eventuais problemas, implementando inclusive modificações do projeto inicial para atender ao direito à vida do consumidor.

Autoo: Alterações nos conteúdos de itens de série das versões PcD deixam margem para que os consumidores possam pleitear na Justiça alguma forma de reparação ou exigir que a empresa lhes entregue o modelo que foi descrito no pedido?

Idec/Igor Marchetti: Entende-se que em casos de alteração unilateral do contrato pelo fornecedor entregando produto com outras características da contratada, são passíveis de questionamento pelos consumidores através dos artigos 30, 35 e 51 do Código de Defesa do Consumidor. 

Autoo: É possível exigir que a montadora entregue o veículo na versão solicitada no pedido ou, ao menos, o abatimento proporcional do preço com relação aos itens perdidos? É possível, ainda, ao consumidor desistir da compra, sem que isso lhe acarrete ônus, por conta da mudança indesejada de catálogo? 

Idec/Igor Marchetti: Como houve modificação das condições do veículo adquirido considera-se que o consumidor pode exercer seu direito contido no artigo 35 do CDC, escolhendo entre uma das medidas, quais sejam: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

Autoo: O Idec recebe muitos questionamentos parecidos de consumidores que realizam a compra PcD e vivenciaram questões semelhantes? Em caso afirmativo, qual é a orientação do Instituto?

Idec/Igor Marchetti: É muito importante que o consumidor guarde todos os documentos e descritivos relacionados a sua compra. Normalmente recebemos dúvidas relacionadas à problemas com veículos e consideramos que a orientação é semelhante para casos como compra de veículos para PcD. A recomendação é que o consumidor primeiramente faça o questionamento por meio de carta para a empresa com A.R. para criar provas a seu favor. Se não resolver pode reclamar na plataforma consumidor.gov.br (ligada ao Ministério da Justiça) e, por fim, ingressar com ação judicial.